Streaming: se espremer, sai sangue

Conversamos com psicólogas para tentar entender o sucesso de podcasts, séries e documentários sobre crimes reais. Foto: Unsplash.

Por um período de pouco mais um ano, colaborei com o site Lado B, que tinha como editor o jornalista André Barcinscki, um dos profissionais que me inspiraram a querer seguir nessa profissão. Infelizmente, a página saiu do ar, já que nenhum dos envolvidos (incluindo este rapaz aqui) tinha tempo para se dedicar a mantê-la no ar.

Como escrevi bastante coisa, vou publicar algumas aqui no blog. A primeira matéria, publicada originalmente em julho de 2022, é sobre o sucesso de seriados, filmes, podcasts e documentários de “True Crime”. Fiz uma pequena adaptação no texto, já que, há época da sua publicação, destacava a estreia de “Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez”. Confira abaixo.

Streaming: se espremer, sai sangue Conversamos com psicólogas para tentar entender o sucesso de podcasts, séries e documentários sobre crimes reais

Em julho de 2022, a HBO Max estreou a série documental “Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez”, que trouxe detalhes inéditos de um dos crimes mais famosos da história do Brasil, envolvendo atores da Rede Globo. Em 1992, a jovem atriz e bailarina Daniella Perez foi morta por seu colega de elenco da novela “De Corpo e Alma”, Guilherme de Pádua e, por sua então esposa, Paula Thomaz. O caso teve grande repercussão midiática, e, em cinco episódios, o doc trouxe relatos impressionantes de amigos e familiares de Daniella, incluindo sua mãe, a autora Glória Perez, mostrando uma força descomunal para buscar justiça por sua filha.

Este é apenas mais um dos muitos conteúdos sobre crimes reais que despertam, cada vez mais, o interesse da audiência – e, consequentemente, das plataformas de streaming, tanto de vídeo quanto de áudio. Até os jornais estão apostando nestes formatos, como é o caso da “Folha de S. Paulo” que lançou, no início de junho de 2022, o podcast “A Mulher da Casa Abandonada”, feito em parceria com o jornalista investigativo Chico Felitti.  Os episódios contam a história de uma mulher que mantinha a sua empregada doméstica como escrava em uma velha mansão no bairro de Higienópolis, em São Paulo, e que também despistou o FBI, se livrando de acusações de crimes cometidos nos Estados Unidos entre a década de 1970 e o início dos anos 2000.

O interesse por podcasts de crimes reais foi objeto de uma pesquisa realizada em 2019 pela CivicScience, empresa de inteligência de dados norte-americana. A pesquisa mostrou que as mulheres são as maiores consumidoras desses podcasts. De acordo com Daniela de Oliveira, psicóloga e integrante do Programa de Mudança de Hábito e Medicina do Estilo de Vida do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Pro-MEV-IPQHC-HCFMUSP), este fato pode estar ligado à empatia que as mulheres sentem umas pelas outras, especialmente nos casos de crimes de feminicídio ou estupro, por exemplo. “Mas também pode ser uma maneira de tentar identificar alguns sinais de que algo de ruim possa acontecer, o que as leva a desenvolver mecanismos de defesa para escapar de eventuais situações similares”, completa.

De acordo com a especialista, tanto os podcasts quanto as séries e documentários de crimes reais despertam os nossos instintos mais primitivos. “Há um interesse natural presente em alguns de nós, seres humanos, em observar a realidade destes crimes, especialmente quando já sabemos – ou pelo menos imaginamos - o que vai acontecer. De certa forma, isso nos deixa preparados e atentos em situações que se assemelham, para que possamos nos proteger”, diz.

Mas há outros fatores ligados ao sucesso do “true crime”, entre eles o sentimento de que a justiça foi feita – especialmente nos casos em que o crime é solucionado e os acusados são condenados. “É uma espécie de catarse, como se a pessoa visse naquele conteúdo a representação de todos os seus problemas e frustrações, o que pode causar uma certa ‘alegria’ com o desfecho”, diz a psicóloga.

Segundo a especialista, o nosso neurônio-espelho, que nos ajuda nos primeiros anos de vida a aprender a fazer coisas por imitação, nos permite sentir a emoção dos outros em nós mesmos, torcendo pelo "final feliz”. “Os sentimentos são ‘contagiosos’. Então, ao ver o desfecho com prisão de um criminoso, por exemplo, é como se projetássemos todos os nossos problemas naquilo, como se também sentíssemos que o nosso ciclo se fechou e que as nossas injustiças foram resolvidas”, explica.

Instinto detetivesco, o papel da mídia e a saúde mental

O sucesso de histórias de crimes reais também passa pelo instinto “detetivesco” de algumas pessoas. Segundo a psicóloga Samantha Lima, há pessoas que, de alguma forma, querem “fazer parte” do que assistem, tentando “elucidar” o crime.  “Existem indivíduos que debatem com sua família e acabam por criar novas teorias do que pode ter acontecido ou duvidando do que é retratado”, diz a especialista.

As duas profissionais acreditam que há outro fator para o crescimento deste tipo de conteúdo:  a espetacularização da mídia em alguns casos, especialmente se o crime envolver pessoas conhecidas do grande público, como foi o caso da atriz Daniella Perez. A cobertura da imprensa também é almejada pelos assassinos em série que, em sua maioria, buscam um certo grau de notoriedade – levando-os a uma sensação de prazer, uma vez que toda a atenção está voltada para ele.

Essa sensação de querer ser uma “celebridade” é muito bem retratada no filme “Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal (Extremely Wicked, Shockingly Evil and Vile, 2019”, mostrando o poder de sedução que o assassino em série Ted Bundy (interpretado por Zac Efron) tinha sobre a mídia e as pessoas à época de seus crimes, cometidos no final dos anos 1960 e início da década de 1970.

Com o crescimento de produções de “true crime” - só a Netflix possui quase 50 produções dedicadas ao tema em seu catálogo - é normal que haja uma superexposição, especialmente quando as plataformas usam algoritmos que sugerem conteúdos similares cada vez que as acessamos. “Isso leva a pessoa a consumir mais e mais este conteúdo, o que pode prejudicar a saúde mental. O instinto de alerta fica todo o tempo ‘ligado’, pode causar problemas em nossa capacidade de raciocinar claramente, nos fazendo misturar a realidade com o que está sendo retratado”, diz a psicóloga Daniela de Oliveira.

Samantha Lima concorda que é preciso moderação para consumir seriados, podcasts ou documentários de crimes reais. “Cada indivíduo é único e a forma com que ele realiza ou externaliza seus desejos e vontades é particular de cada um. Desde que este consumo seja feito sem extrapolar o razoável, não há problema nenhum em gostar de acompanhar essas histórias”, finaliza a psicóloga.